Tenho pouco tempo para desenvolver meu pensamento sobre a complexa questão colocada. Mas veja algumas linhas de raciocínio rapidamente rascunhadas. Em primeiro lugar, os milhões de africanos, homens e mulheres transportados para várias colônias ocidentais na América, não apenas contribuíram para o desenvolvimento econômico dessas colônias produzindo riquezas com seu trabalho escravizado não remunerado, como também trouxeram riquezas culturais e desenvolveram outras in loco através de uma resistência que continua até hoje. Essas culturas, chamadas no singular de “cultura negra”, já fazem parte do pluralismo cultural do Brasil, pois são partilhadas e consumidas por todos(as) os(as) brasileiros(as), independentemente de sua origem étnica. A questão crucial que se coloca é sobre o lugar ocupado coletivamente por esses descendentes de africanos em um universo atravessado pelas práticas racistas. Outra questão que se coloca é o lugar ocupado por essas culturas e a história de seus produtores no sistema educativo brasileiro dominado pelo eurocentrismo. É claro que os antepassados africanos brasileiros de hoje são oriundos de várias sociedades africanas, ou seja, de grande plurismo étnico-linguístico. Ao serem deportados para cá, eles não vieram tecnicamente separados como em suas terras de origem. Eles foram reunidos numa mesma fazenda e submetidos juntos a um trabalho escravizado. Não havia outra saída para sobreviverem juntos, a não ser se aculturarem para formar uma única cultura, conservando as diferenças regionais que fazem com que um negro baiano tenha algo que o diferencie de um negro gaúcho.

Nessa cultura, produto da aculturação, eles conservaram tudo o que chamamos de africanidade, isto é, as semelhanças principais que ainda os ligam à Mãe África. Essas semelhanças estão no corpo, na música, na dança, nas religiões de matrizes africanas, nas artes visuais materiais e não materiais, entre outros. Essas artes conservam traços de africanidade, se não, não seriam chamadas de artes afro-brasileiras. Buscar a origem étnica africana da arte afro-brasileira seria, do meu ponto de vista, uma busca inútil para a diáspora, até porque na própria África temos dentro da rica diversidade semelhanças essenciais que constituem a africanidade, esse rosto comum que só pode ser encontrado na África e não na Ásia ou na Oceania. Isso não quer dizer que a África é toda a mesma coisa ou é toda diferente. Devemos trabalhar com o conceito de diversidade na unidade e unidade da diversidade. A busca de origem é importante para o processo de construção identitária, mas nesse caso, a origem é a África, seja ela mítica ou real.


Kabengele Munanga possui graduação em antropologia cultural pela Université Officielle Du Congo à Lubumbashi e doutorado em ciências sociais e antropologia social pela Universidade de São Paulo, onde atualmente é professor titular. Seus escritos reflexionam acerca do racismo, identidade e memória negra, África e Brasil.


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Publicado por:Philos

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